Não lembro o filme. Lembro do
cine Palácio. Me vejo saindo pelas portas laterais, aglomeração na rua estreita
e as pessoas discutindo. O quê? Por quê? Nos filmes, onde sempre o 'mocinho'
tinha a torcida da plateia, contra o bandido-vampiro voraz pelo sangue daquele,
ali, a inversão: o bandido se sobrepôs na ética invertida: venceu o mal. Surpresa,
mal-estar, atordoamento, estupefação das pessoas. Eu entre elas ‒ cara sem riso. A ripa em
Hollywood. Sem respostas.
E a mudança na civilização se
iniciou nítida ... Décadas se passaram... Hoje, o ponto de interrogação é uma exclamação.
Sem dó maltrata as pessoas que ousam enfrentá-lo.
Estava eu numa reunião, sala
caseira, amigas e amigos se revendo. Momento agradável. De repente, uma
discussão: 3 donas de casa, as vozes alteradas, discutiam 'quem matou quem' na novela da nove. A cena me foi tão absurda, que
não me contive: Gente, ninguém
matou ninguém! Não houve crime! Os olhares, ripas! Meu tom de voz? Minha interferência? Silêncio! Calei! Alfred
Hitchcok: 'Não existe terror no estrondo,
apenas na antecipação dele'.
Há oito anos, 4 donas de casa em
uma série: Desperates Housewives (Donas de casa desesperadas). Uma vez por
semana, três meses no ano ‒
oito!!! Para entreter! O que vale é a discussão: antecipação dela. As donas de
casa, conquistadas. Me fisgou.
O roteiro, de um homem. Mulher,
assunto preferido! Dona de casa faz almoço, faz breakfast rotineiro, cuida de filhos, do marido, lava e passa, tem
seu poquerzinho, espia pela janela. Vende sabão, máquina de lavar, vende crime.
Fácil, fácil escrever sobre elas. Seguram audiência! Que fazer? Minha cara, sem
riso, absorvia. No início, legal! A
pegadinha logo se absorveu minuciosamente em 8 anos-crimes!
O crime entretendo!O título revelado no final: elas enterraram
o padrasto de uma delas estuprada por
ele. O padrasto, estuprador, por não ter onde dormir, fora dormir na casa dela
e, claro, casou com a mãe dela. Quem matou foi o Carlos, o marido dela. Com um
candelabro! Houve julgamento, acusaram uma delas. Na camisa do morto, suas
impressões digitais. Mas havia um pacto de amigas! Álibi do advogado, ' acho admirável você doar roupas', punha
em cheque sua culpa.A saída de roteirista, que não
sabe o que fazer: usou 'Deus ex machina'.
'Caiu do céu.' Uma amiga, idosa, na cama, entubada, com câncer, sem força,
escutou a confissão da Gabi e pasmem... na hora H, no circo montado como um
tribunal, chegou toda faceira e assumiu o crime!!! E declarou: Matei-o! Com o
candelabro, arrastei o corpo até um bosque (longe) e o enterrei! Perguntas
incrédulas. Respondeu: adrenalina, medo. Festa no tribunal! Festa na casa da
acusada! Regada a champanhe. A idosa assumiu a cama, os tubos , fez de cara de
cadáver, e morreu! As 4? Todas se tornaram milionárias. A ré tornou-se senadora
num estado americano. O assassino e a mulher, programa de TV para vendas de
roupas de griffe. A outra, com o
marido num ap., visão da Quinta Avenida e champanhe. A outra vendeu tudo e foi
cuidar de neto da filha adolescente. Daí, chegou outra dona de casa, com uma
caixa e um segredo. Mais 8 anos! Não!
Ficção? Realidade? O coringa que o diga! Pegou a ripa e matou! 12. Na terra do tio
Sam. O presidente, entristecido! A imprensa divulgou as fotos dos assassinados!
Como vendeu! Entreteve! No Brasil, povo acostumado ao crime, onde a notícia de ’45
mil mulheres assassinadas’ por seus próximos já não usa a exclamação, não teve
reação. Outra apologia ao crime, realizada dentro da prisão, como cerimônia
religiosa, comparecimento total dos presos, agentes proibidos de estar com eles
(notícia do dia 6/9/12 –Primeira Hora) sem reação também...
Olhei o sol azul... as pessoas na
rua... Que imagem linda! A da Terra. Que imagem feia! A dos homens!
Fronteira entre ficção e
realidade? É lero-lero!
Só então me dei conta do filme no
cine Palácio! O bandido! O certo. O crime: o entretenimento! Sutilmente
injetado nos cérebros. Com o aval de Hollywood! A fábrica de ilusão tornou-se a
fábrica de ripas! Do crime!?
Que imagem linda! A Terra, os gansos, o Universo!
Que imagem degradante! A dos homens!
Que imagem preta! A da mídia! A serviço do crime!?
P.S Já sei. Vão me contestar. Olho, ouço, falo só do
negativo.
Não, é por olhar o que há de lindo na Terra, a ciência, a
evolução tecnológica, os voluntários da ética, os que lutam pela beleza e
perfeição da civilização – e vê-los tão ‘escondidos’, tão poucos, tão amedrontados,
e eu estar entre eles, é que falo sozinha. Aqui.
Joana Rolim
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